Dando continuidade a série - Viúvas do Veneno, esse blog traz a reportagem principal publicado no segundo dia.
Parabenizamos ao Jornal do Nordeste e seu repórter MELQUÍADES JÚNIOR, pela ousadia de fazer essa série e nos mostrar o que existe por de trás de cada número ... uma vida, uma família.
Para quem não viu a primeira reportagem Viúvas do Veneno, CLIQUE AQUI.
No final desse artigo tem vários links que faz parte da série.
Cubati (PB). Na casa de Marizaldo, tudo lembra Rosália. Coisa de menina que pega uma caneta e escreve o próprio nome num pedaço de papel ou de parede e vai espalhando a sua existência pela casa. Na janela azul que dá para a rua sem nome, um pedaço de giz escreve Rosália, Aldo, Maycon, Pedro. Uma família existe ali. O último nome, ainda não colocado, seria de Samuel, mas da última vez que Rosália sai de casa, para não voltar, o garoto só existe em sua barriga.
Sem Rosália, Aldo cuida dos três filhos com a ajuda da sogra e da irmã. Foto: Waleska Santiago
Hoje, do lado de dentro, são várias fotos que espalham a ausência de Rosália pela casa. Em Cubati, agreste Paraibano, a reportagem encontrou um viúvo do veneno. Aldo (ninguém o chama Marizaldo) perdeu Rosália, que deixou três filhos sem mãe. Sueli perdeu a filha e, no fim das contas, todos saíram perdendo.
Com 28 anos, Aldo planta tomate perto de casa, é o responsável pela aplicação do coquetel de venenos. Aprendeu quando trabalhou nas grandes plantações à beira do açude Boqueirão, que leva o grosso da produção para Campina Grande e João Pessoa.
Veneno na roupa
Rosália, de 23 anos, é a responsável pela lavagem da roupa de Aldo quando volta da aplicação do veneno. "Ela colocava na bacia pra enxaguar, a água ficava verde que você precisava ver". Na prática, Rosália toca diretamente o que Aldo tenta não tocar. A mulher morre e o marido não se perdoa.
Vez por outra, ela ajuda na plantação de tomate. Diminui o cansaço do marido e ainda garante que ele não tarde a chegar. A última vez que vai, já está com o bucho apontando para frente.
Nas consultas de pré-natal, Rosália é alertada pelo médico de que não tenha contato com os venenos que o marido aplica, já que mulher grávida fica com o sistema imunológico baixo.
No sexto mês de gestação, as manchas no corpo e o sangramento não parecem mais normais para o período. Rosália vai para o hospital público de Soledade, município maior que Cubati. De lá, a enviam para Campina Grande, porque já se constata a necessidade de transfusão sanguínea. Mas só encontram tratamento para ela no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Filgueira (Imip), em Recife (PE).
Rosália sofre sem dor. A Leucemia é silenciosa até quando já domina o corpo. Tem, sim, uma dor ainda maior do que seria a do câncer mesmo se ele resolvesse gritar em suas veias: a saudade. De Aldo, o esposo e primeiro namorado, de Maycon e Pedro, os filhos. Ainda mais de Samuel, o único a estar com ela no hospital porque vai de carona em seu útero e por mais um mês fica.
Os filhos
Quando vai crescendo, as roupas de Maycon ficam para Pedrinho, três anos mais novo. Com Samuel, o caçula, seria o mesmo. E é, porque Samuel sobrevive. Quando Rosália começa a perder ainda mais sangue já tem um mês de hospital. Os médicos fazem cesária de emergência.
É quando o paradoxo bate à porta da família: a alegria do nascimento e a tristeza da doença. O menino nasce e Rosália não para de sangrar. A comemoração congela-se no tempo, coagula-se. "Era uma pessoa que não se maldizia com nada. Só chorava mesmo com saudade dos meninos", conta dona Sueli, mãe de Rosália.
Com a doença de Rosália, Aldo desiste da plantação de tomate. Mais que isso, não come mais tomate e desiste da agricultura. O campo em que produzia para o "Rei do Tomate" está abandonado e quando começar a funcionar de novo não será pelas mãos dele. As mãos que, com outras, plantava dez mil pés de tomates e colhia seis mil caixas do vegetal por mês, o que lhe rendia cerca de R$ 800.
"Acontecer logo com ela? Porque a gente cuidava disso, do veneno. Eu acho que se tivessem descoberto antes, tinham resolvido. Ela estava viva hoje". Mas nem Aldo passa ileso ao contato com o veneno. Antes da aplicação, ele que faz o coquetel, a mistura de vários venenos.
"Era veneno de tudo no mundo. Aí mexia e colocava um motorzinho nele e saia com as mangueiras pulverizando, de uma ponta a outra. Dependendo do campo, era o dia todinho. Tinha dias que eu andava quase gelando, os ossos doendo, quase sem poder andar, com febre. Depois que saí de lá eu não tive mais nada", conta.
Fome
Com um cateter enfiado na garganta - não bastasse a leucemia, ainda tem complicações nas vias respiratórias, Rosália tem um sonho, naquele momento o maior: ir a um restaurante. Arroz, feijão, farofa e carne foram perdidos do seu paladar em mais de um mês só comendo um ensopado do hospital. "Um dia eu provei... A coisa mais horrível do mundo", lembra Sueli.
Rosália passa o dia vendo as fotos de Maycon e Pedrinho. Passa a mão como se acariciasse os rostos. Pergunta se estão comendo, fazendo o dever de casa. E Samuel? Tão pequeno e indefeso, e privado do conforto da mãe. Vê Rosália, e é visto por ela, apenas por duas vezes em que ela dá de mamar. Tão fraca, mas forte para alimentar outra vida.
O bebê recebe alta na mesma semana em que nasce. Sem a mãe, Samuel ganha outras duas: a própria avó materna, dona Sueli, e a tia Joelma, irmã de Aldo. Para as outras duas crianças, o pai está lá, mas, com a mãe, é diferente. E é diferente todas as noites. Rosália contava história para Maycon. O que não vinha da cabeça de mãe, era pelos livros ilustrados da estante. O mundo do garoto fica menos fantástico sem Rosália. "De vez em quando ele me chama, mas não sei contar história não. Como não dorme só, ele fica mais eu assistindo TV até pegar no sono, aí levo pra cama", conta Aldo.
No leito hospitalar, Rosália não dorme sem a mãe por perto. O sono das duas vem para dar uma pausa no pesadelo.
Força
"Não sei de onde tirei tanta força, você ver um filho seu ali, se acabando e não poder fazer nada". Pior do que estar com a filha doente no hospital é não estar lá no lugar dela. Mesmo com os dias dedicados a Rosália, Sueli precisa aparecer por casa, saber dos outros filhos e de Damião, o marido. Dá um abraço na filha. "Mamãe, não demore". "Demoro não". Quando volta, Sueli vê nos olhos de Rosália "a maior alegria do mundo".
De volta para Cubati, o telefone toca e dona Sueli vibra. É do hospital. Tiraram Rosália da UTI. Ela está pior, mas é a forma encontrada para chamar um familiar sem causar pânico.
"Ela pelejava pra falar, eu via nos olhos dela, mas não conseguia. Apontou para a sonda. Eu vi e disse tô vendo, minha filha, mas não se preocupe não que eles tão botando sangue". Como quem sai para tomar água, Sueli vai para no corredor hospitalar e desaba em lágrimas.
A causa
"O que acabou com ela foi o veneno, acabou a medula dela. Eu acredito no médico, no que eles disseram. Primeiro suspeitaram que poderia ser picada de um besouro, ai viram que não era. Suspeitaram um monte de coisa, quando veio o resultado do exame que levaram pra São Paulo", conta a mãe.
PARA APROFUNDAR VEJA:
O tempo não se repõe. E mesmo que o fizesse, e fosse como as transfusões de sangue que pouco efeito surtem em Rosália, ganhar horas pode significar dose extra de saudade e sofrimento.
Uma manhã não foi como outras. Rosália amanhece esperta, que depois Sueli entende como a "melhora da morte". O olhar está mais vivo. Com o dedo, aponta para o próprio rosto. Quer um beijo. A cama é alta, mas Sueli dá um jeito. Rosália retribui passeando levemente a mão no rosto da mãe. De sublime, o momento é doloroso. "Eu saí porque não aguentei. Ela jogou um beijo pra mim. Eu disse fique aí que eu já venho". Enquanto chora novamente no corredor, Sueli guarda a cena do beijo, derradeira entre mãe e filha.
Samuel está com oito meses e segue cuidado pela vó Sueli e a tia Joelma. Maycon ficou mais calado e não pergunta uma só vez pela mãe, mas revela a saudade em todas as noites em que gostaria de dormir ouvindo histórias.
Pedrinho pergunta pela mãe todos os dias. De vez em quando olha para o céu e pergunta: "mamãe não vai descer não?". E, quando Aldo chega do centro da cidade, solta: "não trouxe a mamãe não?".
Rosália se foi há oito meses. Renata, outra filha de dona Sueli, está grávida de uma menina no oitavo mês de gestação. Para a família, é Rosália voltando em forma de esperança, sentimento transformador nessa família paraibana.
MELQUÍADES JÚNIOR
REPÓRTER
Fonte: Diário do Nordeste
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