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sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Série Viúvas do Veneno3 - Da morte silenciosa aos gritos nas evidências e saudades de Vanderlei





Dando continuidade a série - Viúvas do Veneno, esse blog traz a reportagem principal publicado no terceiro dia.

Parabenizamos ao Jornal do Nordeste e seu repórter MELQUÍADES JÚNIOR, pela ousadia de fazer essa série e nos mostrar o que existe por de trás de cada número ... uma vida, uma família.

Para quem não viu a primeira reportagem Viúvas do Veneno, CLIQUE AQUI. e a segunda reportagem AQUI.

Limoeiro do Norte. Ressentir a dor talvez seja a comprovação de que ela nunca saiu dali. Como esquecer é ato vão, Gerlene Silva tenta superar a dor da perda de Vanderlei. Ela não acredita em superação, mas na possibilidade de conviver melhor com a dor da separação eterna. E a dor aumenta todas as vezes em que o filho, Davi, pergunta "cadê meu pai?".

Gerlene Silva tornou-se depressiva e evita falar com o filho sobre a morte do pai. 
Foto: Waleska Santiago

Desde que Vanderlei Matos foi para o céu de Davi, Gerlene é tensa, depressiva. Não quer viver de pesar. Luta contra o luto. E, nesta batalha, ganha o nervosismo. Perde 35 quilos, mas ganha amigos a apoiar neste momento de pesar que já dura três anos. Perde um pedaço de sua própria identidade: aquela história de que existe a outra metade é verdade para a viúva, estranha alcunha para quem só tem 23 anos de idade.

Vanderlei é seu primeiro e único amor. Cresceram juntos nas ruelas da Cidade Alta, bairro mais populoso de Limoeiro do Norte. Tiveram Davi e, depois, carteira assinada para garantir o sustento.

Produtos químicos

Vanderlei manipula fertilizantes e agrotóxicos. Separa os produtos de acordo com a especificação e quantidades indicadas na guia para repassá-los ao setor de mistura. Também é sua tarefa guardar o estoque restante do produto. É assim por três anos, sempre no período da noite, desde 2005. Mas com o tempo, algumas coisas vão mudando no trabalhador rural.

"Vanderlei, tá acontecendo alguma coisa?". Gerlene não pergunta para saber, ela já sabe, só quer a sinceridade. O esposo está com uma cor diferente, se ele concorda que é estranho, pode ser um sinal de que ele também está preocupado e, portanto, aceita ajuda. "Ele sempre foi uma pessoa calada, não comentava nada com ninguém": "não, eu tô bem, não tem cor esquisita não", afirma.

Sintomas

Depois, a situação vai piorando e não é possível negar nem para si mesmo: rachaduras nos dedos, sangramento pelo nariz e ressecamento dos lábios. As primeiras consultas são com o médico da empresa. Vanderlei sente tontura, fraqueza nas pernas. Nem parece o rapaz de porte atlético que quando chega do trabalho tranca-se no quarto a fazer exercícios aeróbicos e levantamento de peso. Está sempre em forma para jogar futebol, sua diversão predileta. Fora o trabalho, suas duas "saídas" são para o campo jogar e para os passeios com a família no fim de semana.

Testemunha

"Macho, vá pra casa". É o agricultor Anaildo Silva tentando fazer alguma coisa pelo amigo, vizinho e colega de trabalho. Hoje, é testemunha das atividades exercidas por Vanderlei, bem como das crises doentias que ele tem e não conta em casa e nem fora dela. "Eu pensei que ia melhorar, mas foi cada vez piorando", lembra Gerlene. E ninguém sabe o que é. Daí a razão do "não, meu filho, vá mais pra lá, vá" que ele diz toda vez que o menino se aproxima.

Só perde o medo de contaminar quando, após exames realizados no Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC), em Fortaleza, percebe-se a grave discrasia sanguínea, uma séria alteração venosa e, ainda mais, o comprometimento das funções do fígado, exigindo um transplante com urgência.

Com filho de pouco mais de 1 ano de idade, Gerlene não pode sair da cidade. Acompanha por telefone os 23 dias de internação hospitalar de Vanderlei. Dá entrada no dia 7 de novembro de 2008. O dia 30 do mesmo mês, especificamente à 1h40, é uma data para se esquecer. Melhor, superar, ou, ao menos, conviver com a realidade da dor, que, se não sair, ao menos doa menos.

Evidências

A morte de Vanderlei Matos causa medo em dezenas de homens do bairro Antônio Holanda, a Cidade Alta, em Limoeiro do Norte. O lugar até hoje fornece boa parte dos trabalhadores rurais para a região. Até então, os relatos comuns de enjoos e fraquezas não eram associados à exposição diária aos agrotóxicos, menos ainda que isso pudesse causar a morte. A família não tem dúvidas de que o veneno contaminou o homem.

"Eu só quero que não aconteça com outras pessoas o que aconteceu com meu marido. Eu queria que tudo isso se resolvesse em paz. E tão ruim, depois dele morrer ainda ver gente passando por esses problemas", afirma a jovem viúva.

A Universidade Federal do Ceará (UFC) realizava desde 2006 o "Estudo Epidemiológico da População da Região do Baixo Jaguaribe Exposta à Contaminação Ambiental em Área de Uso de Agrotóxicos". É neste contexto que conhecem o caso de Vanderlei.

Diante das especulações sobre a causa mortis, três médicos especialistas decidem investigar: Maria Terezinha, doutora em Doenças Infecciosas e Parasitárias pela Universidade de São Paulo (USP); Alberto Novaes, mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); e José Milton de Castro Lima, Gastro-Hepatologista e doutor em Gastroenterologia pela Escola Paulista de Medicina. O diagnóstico: morte por hepatopatia grave induzida por substâncias tóxicas.

Resultado parecido vem de investigação paralela de Ayla Maria Cavalcante Sales, perita médica do Ministério do Trabalho. O caso ainda aguarda resposta da Justiça do Trabalho.

Seu céu

A jovem viúva Gerlene não esperava que acontecesse, muito menos tão cedo, mas, como a mãe, sente a dor de ser viúva. Dona Maria do Socorro Silva dos Santos preenche, junto com seu filho, Davi, uma parte do vazio deixado por Vanderlei. Hoje, a família é formada pelas duas viúvas, Davi e o retrato de um homem que nunca sairá da parede da sala.

Ela nos conta que espera que o filho cresça um pouco mais para entender que, antes de ir para o céu, "seu pai trabalhava com o veneno. Aí, ele não se deu bem e morreu", de uma forma silenciosa e crônica, como ocorreu com outros trabalhadores abordados nesta série especial de Reportagens.


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