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domingo, 15 de julho de 2012

'Há muitas evidências de danos dos agrotóxicos à saúde'




Em entrevista, a pesquisadora Lia Giraldo explica como os agrotóxicos foram introduzidos no Brasil a ponto de o país ser hoje o campeão mundial no uso de venenos. Lia é pesquisadora do Departamento de Saúde Coletiva do Laboratório Saúde, Ambiente e Trabalho da Fiocruz Pernambuco. Ela coordena um grupo de pesquisadores responsáveis por revisar os estudos científicos existentes sobre 11 agrotóxicos que estão em processo de revisão pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

O uso de agrotóxicos no Brasil vem crescendo ano após ano. O país lidera o ranking dos maiores consumidores de agrotóxicos no mundo. Por que consumimos tanto veneno?

Lia Giraldo: Desde a década de 70, exatamente no ano de 1976, o governo criou um plano nacional de defensivos agrícolas. Dentro do modelo da Revolução Verde os países produtores desses agroquímicos pressionaram os governos, por meio das agências internacionais, para facilitar a entrada desse pacote tecnológico. Em 1976, o Brasil criou uma lei do plano nacional de defensivos agrícolas na qual condiciona o crédito rural ao uso de agrotóxicos. Assim, parte desse recurso captado deveria ser utilizada em compra de agrotóxicos, que eles chamavam, com um eufemismo, de defensivos agrícolas. Então, com isso, os agricultores foram praticamente obrigados a adquirir esse pacote tecnológico. E também com muita rapidez foi formatado um modelo tecnológico de produção que ficou dependente desses insumos, e isso aliado ainda a uma concentração de terras, mecanização, com a utilização de muito menos mão de obra. Tivemos um grande êxodo rural: de lá para cá o Brasil mudou completamente, era um país rural e virou um país urbano, seguindo um fenômeno que aconteceu também em outros países. Então, o Brasil se rendeu às pressões econômicas internacionais na defesa desse modelo.

Depois disso houve muito lobby político, e, inclusive, tivemos ministro ligado a empresas produtoras de agrotóxicos. E isso fez com que o Brasil não só passasse a ser consumidor, mas também produtor desses produtos. As cinco maiores produtoras de agrotóxicos tem fábricas no Brasil - Basf, Bayer, Syngenta, DuPont e Monsanto. E depois, dentro dessa linha, e associado ao ciclo de algumas monoculturas como a soja, o algodão, o café e a cana de açúcar, esse modelo casou bem com o modelo de produção de monocultura extensiva , demandando cada vez mais terras, cada vez mais expulsando o pessoal do campo para a cidade. Na divisão internacional do capital, o Brasil ficou com esse perfil de exportador de commodities , com um modelo de desenvolvimento baseado no agronegócio e essa é a explicação para sermos os campeões no uso de agrotóxicos.

A pressão para que os agricultores passassem a usar agrotóxicos também foi colocada em prática nos outros países do Hemisfério Sul?

Lia: Sim. Se analisarmos países da América Latina, como a Argentina e o Uruguai, cada um com suas características, perceberemos que isso se repete. Mas no Brasil esse quadro ganha proporções maiores com o nosso gigantismo territorial e também facilidades e estratégias de abertura para o capital externo, com um governo absolutamente permeável. O Brasil estranhamente tem dois ministérios da agricultura, um para o agronegócio, que é o "gordão", com bastante dinheiro, e outro para a agricultura familiar, que é magrinho e com pouquinho dinheiro. São dois ministérios da agricultura com políticas completamente divergentes. E por onde a bancada ruralista consegue pressionar a Casa Civil? Por dentro. Criaram uma estrutura por dentro do governo, que é o Mapa [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento], onde passam os interesses do agronegócio. A bancada ruralista tem total trânsito no governo através do Mapa. E a agricultura familiar fica na depêndencia do Ministério do Desenvolvimento Agrário, o MDA. Isso é uma boa evidência para mostrar como tem sido a política do Brasil: uma política ambígua para dar resposta às pressões da globalização.

E quais são as características destes agrotóxicos hoje. Eles são mais tóxicos do que nos anos 70?

Lia: A evolução da toxidade tem mais a ver com a resistência das pragas aos produtos. A motivação da evolução não é para produzir produtos menos tóxicos para a saúde ou o meio ambiente. Mas sim porque a natureza reage e as pragas se tornam mais resistentes, e as empresas são obrigadas a produzir novas moléculas para os agrotóxicos serem efetivos. Isso está aliado também com o aumento da quantidade de uso, porque enquanto eles não conseguem produzir uma nova molécula a qual a praga seja mais sensível, eles aumentam a carga de agrotóxico. Então, existe uma toxidade e um perigo com a introdução de novas moléculas, que são mais tóxicas para os seres vivos, portanto para nós, seres humanos também - para as células, para o DNA, para as estruturas biológicas. Mas também há um grande perigo quando se aumenta a concentração de um produto que está tendo baixa eficácia e se aplica esse produto sozinho ou associado a outro ou a um coquetel de outros produtos tóxicos. Se, aumentando a concentração de determinado produto, ele já começar a ameaçar a saúde pública, esse produto já não pode mais ser usado. Aí inventam uma outra molécula, e assim vai.

Como as experiências feitas para o registro são baseadas apenas em efeitos agudos - ou seja, a morte - e não há testes de longo prazo principalmente para a saúde humana, a nova molécula é registrada. Mas uma coisa é ver se um ratinho desenvolve câncer em seis meses ou um ano e outra coisa é uma pessoa ficar exposta durante muitos anos. Então, esses aspectos não são levados em consideração para o registro de novos produtos e, com isso, eles têm conseguido registrá-los, até que nós comecemos a registrar novamente danos à saude e ao meio ambiente e uma série de efeitos negativos que vão então permitir que a agência reguladora casse o registro ou restrinja os produtos.

E quais as consequências disso para o meio ambiente e a saúde dos trabalhadores rurais e também para a população de modo geral?

Lia: Muitas vezes tudo é feito para ocultar o risco. Se a saúde pública não tem um sistema de informação capaz de monitorar as populações expostas, sejam elas de trabalhadores que trabalham com os produtos, sejam elas de consumidores que consomem os produtos com resíduos, acaba-se não tendo a informação que permitiria a restrição do uso. Então, a falta de informação muitas vezes tem sido utilizada para manter os produtos no mercado. Não existe, portanto, um monitoramento adequado. O Brasil investe muito pouco em monitoramento e essa falta de informação é o grande álibi das indústrias. As consequências vistas em estudos experimentais são evidências importantes, mas não são suficientes. Porque pode-se alegar que foi em determinado contexto, que é para uma determinada espécie e não para outra, então cria-se sempre uma flexibilidade na hora de extrapolar os dados para a sáude humana.

É muito dificil estabelecer essas regras de consumo e de proteção baseando-se nos parâmetros que são adotados, porque eles são criados justamente para proteger o capital. É necessário, portanto, que tenhamos outros indicadores de vigilância da saúde que não sejam apenas esses restritos a estudos experimentais animais, mas sim baseados em estudos clínicos e epidemiológicos. Há uma resistência quanto a esses estudos serem internalizados como parâmetros para tomar as decisões de registro ou de captação de uma molécula, porque ou os estudos não existem, ou são muito restritos. O governo, as universidades e mesmo as empresas não incentivam esses estudos e a falta desse tipo de informação é uma politica para manter a outra política, porque obviamente favorece a manutenção do modelo. Mas existem muitas evidências de danos dos agrotóxicos à saúde, só que, infelizmente, pelos protocolos que são estabelecidos, esses danos não são reconhecidos para a tomada de decisão.

Como aparecem essas evidências?

Lia: São evidências clínicas através de doenças, agravos, sintomas, efeitos como abortamento, distúrbios cognitivos, de comportamento, morte, manifestações de neoplasias, tumores, distúrbios endócrinos. E muitas vezes os médicos não associam essas evidências com a exposição aos agrotóxicos, não registram isso, não informam, e os sistemas de informação não incentivam e não capacitam os profissionais. Então, há todo um sistema de ocultamento de risco. Dessa forma, quando se consegue fazer o diagnóstico e documentar, acaba ficando como um caso isolado. O próprio pessoal da saúde pública chama veneno de remédio, "remédio para barata, para mosquito", quando, na verdade, remédio é um conceito farmacológico de cura e não para ser utilizado no lugar da palavra veneno, veneno é para matar uma praga que está atrapalhando a lavoura, não tem nada que ver com a sáude. Então, as confusões conceituais fazem parte desse processo de ocultamento de risco.

Antigamente esses produtos todos vinham com uma caveirinha para mostrar que era perigoso, hoje as embalagens vêm com mensagens ecológicas, um bulário com uma linguagem muito sofisticada e de difícil interpretação que as pessoas não conseguem entender. Boa parte dos nossos trabalhadores rurais é analfabeta ou semi-analfabeta e não tem capacidade de entender o que está escrito. Tudo isso faz parte também desse modelo de favorecimento dessa tecnologia que gera muito dinheiro para as empresas produtoras.

Recentemente a Anvisa decidiu pelo banimento de dois agrotóxicos - o Endosulfan e o Metamidofós. Como a senhora avalia a atitude do país no monitoramento desses agrotóxicos?

Lia: Ambos são muito toxicos, têm efeitos adversos muito importantes e esses efeitos são proibitivos. A nossa legislação é muito clara: se o produto tiver evidências de efeitos carcinogênicos, mutagênicos, que podem afetar o desenvolvimento embrionário, etc, tem que ser proibido. Então, o que fazemos é buscar se existem essas evidências para poder manter ou não o produto autorizado.

E hoje há muita pesquisa sobre os efeitos dos agrotóxicos?

Lia: A maior parte dos estudos são experimentais, em laborátorios, com animais, com os protocolos que são estabelecidos pelas agências internacionais, e com esses estudos as evidências são muito fortes. Agora, também procuramos levantar evidências clínicas e epidemiológicas, que embora em menor quantidade, também encontramos bastantes informações que mostram efeitos em populações expostas, em situações de pessoas que tiveram agravos e, nesses casos, o profissional que atendeu conseguiu estabelecer relações entre o agravo e a exposição ao agrotóxico. Esse material foi todo usado para orientar a decisão da Anvisa de propor o banimento do Endossulfan e do Metamidofós.

E em que aspectos é preciso avançar para que se tenha mais pesquisa e se consiga avaliar melhor os efeitos desses produtos?

Lia: Primeiro, as empresas não poderiam ter o registro apenas com estudos dirigidos pela empresa, porque a maioria desses estudos tem conflitos de interesse. Deveria haver um fundo setorial dessas empresas para que o governo induzisse pesquisas nas universidades públicas; para que as universidades e os institutos de pesquisa públicos pudessem ampliar a capacidade de pesquisas nestas áreas, porque a maior parte das pesquisas que as empresas colocam para defender o interesse da molécula [componente base do agrotóxico], são os estudos que eles promoveram e que não tiveram o controle do setor público.

A autorização dos agrotóxicos é feita apenas com base nesses estudos?

Lia: As moléculas que estão em processo de reavaliação pela Anvisa hoje, no passado foram autorizadas apenas com base nesses estudos das empresas. Hoje já temos um papel um pouco mais cuidadoso das agências, basicamente da Anvisa, porém quem ainda tem a obrigação de apresentar as evidências de que a molécula não traz agressividade à saúde é a empresa. Portanto, não temos contra-povas e poderíamos ter contra-provas feitas por órgãos públicos. A reprodução da pesquisa poderia ser feita por um instituto de pesquisa público, com uma certificação de que de fato aquele resultado foi obtido. E não ser baseado apenas em estudos experimentais, mas também de ordem clínica e epidemiológica, porque não se reproduzem os mesmos efeitos de uma espécie para outra.

Mas e no caso de produtos novos, já que não haveria ainda evidências clínicas?

Lia: Por serem novos teriam que passar por todos os estudos experimentais os mais precaucionários possíveis, inclusive utilizando células humanas experimentalmente, por exemplo. Isso se pode fazer com amostras de sangue, não precisa explorar a pessoa, pode-se fazer cultura de células humanas para fazer certos testes. E depois, se não tiver nenhuma evidência de mutagenicidade nem outras evidências, a molécula deveria ser utilizada com muita parcimônia, de forma que as pessoas que fossem expostas no trabalho pudessem ser acompanhadas com o tempo, para ver se de fato não houve nenhum problema. Porque após a concessão do registro, não há a previsão de nenhuma reavaliação periódica. A molécula deveria passar a cada cinco anos obrigatoriamente por uma reavaliação a partir de dados coletados em função de monitoramento, mas não há monitoramento nenhum. É questão de ter uma política para isso, que implicaria novos procedimentos dos três orgãos - Anvisa, Ministério da Agricultura e Ministério do Meio Ambiente -, porque o registro passa pela concordância dos três orgãos.

E a política existente hoje foi concordada com os três órgãos?

Lia: Os órgãos são mais ou menos independentes, mas quem faz o registro é o Ministério da Agricultura, com base nos pareceres da Anvisa e do Ibama e no seu próprio. Mas do ponto de vista legal, quem dá o registro para a utilização é o Ministério da Agricultura. Mas a Anvisa pode pedir a reavaliação no caso de danos à saúde. Mas a saúde teria que ter não só esse processo. Se os estudos mostram, depois de comprovados, que foram bem feitos, que não há nenhum efeito proibitivo, então, o produto deveria entrar numa quarentena e ficar sob observação. Ao mesmo tempo a população potencialmente exposta deveria ser monitorada e, a cada cinco anos, reveríamos o registro. Essa seria a conduta certa da saúde, mas não existe isso. Cada vez que a Anvisa chama um produto para reavaliar porque na literatura internacional aparecem publicações afirmando que o produto é toxico para a saúde humana, o lobby econômico tenta impedir. Por isso todo o processo é judicializado e o Ministério da Agricultura está direto contra a reavaliação e a favor da manutenção da molécula. Então, é difícil porque além do lobby do agronegócio, há também a própria parte do governo que pressiona a favor de manter a molécula no mercado.

A senhora considera que este lobby seria dificultado com os estudos mais eficientes?

Lia: O conflito de interesses existe, mas o que não pode é esse escancaramento das agências governamentais em receber e aceitar esse tipo de pressão. As empresas têm o direito de defender os seus negócios, mas sem que obviamente a saúde pública e o meio ambiente sofram danos. Elas têm que provar que não causam danos para saúde, mas elas não só não provam que não causam danos, como também usam de artícficios cientificistas para obter o registro. Por outro lado, as instituições públicas de pesquisa não estudam, então fica difícil. O governo deve ter uma política de ciência, tecnologia, inovação tecnológica e de resguardo da saúde e do meio ambiente contra a introdução de novas tecnologias que não estão devidamente asseguradas.

E de que forma podemos pensar no fim do uso dessas substâncias tóxicas?

Lia: Essa é uma pergunta que fazemos o tempo todo. Até o final da década de 60, a produção agrícola era feita sem o uso dessas substâncias. Na história da humanidade, a agricultura é a primeira grande revolução produtiva e a maior parte do tempo foi feita sem isso. E existe toda uma ciência da tecnologia, do que chamamos hoje de agroecologia, que é o que o pessoal fazia antigamente. Agora, na medida em que se muda o modelo de produção na base da monocultura extensiva e em agroquímico, se condiciona e se cria um empobrecimento do solo. E à medida que existem mais agroquímicos, mais pragas resistentes exigem mais química, e, assim, cria-se um círculo vicioso de dependência química. E aí é preciso desmamar, como acontece com uma pessoa com dependência química, mas para desmamar é preciso primeiro garantir aos produtores que passarão para uma agricultura tipo agroecológica ou orgânica, incentivos e segurança, para que eles possam produzir. Como aconteceu antes, quando o crédito rural foi condicionado ao uso do agrotóxico, agora pode acontecer o contrário: ser dado o crédito para aqueles que não usarão agrotóxicos, fazer o inverso e criar uma nova escola de agricultura. As indústrias de agrotóxicos ganharam as universidades e as escolas de agronomia, que passaram a ensinar os agrônomos a só produzirem com química. Então, é preciso reformular o ensino da agronomia também.

E a sociedade em geral e os trabalhadores rurais estão convencidos da importância desta mudança?

Lia: Eu acho que a consciência cresceu muito, porque esse modelo é insustentável e se torna cada vez mais caro e cada vez mais dependente de tecnologias pelas quais se terá que pagar royalties e etc. Com isso, a soberania alimentar e a soberania produtiva também vão se perdendo. Esses conflitos permitem espaço para que essas outras alternativas se coloquem. Hoje no Brasil está muito vivo o movimento pela agroecologia, cada vez mais está havendo espaço e interesse por esse outro modelo. Mas não é facil porque não há incentivo por parte do governo. Então, precisaríamos politizar mais essa discussão para que possamos ter, por parte do Estado, outra postura pública perante essas questões.

Ainda existem muito agrotóxicos que são proibidos em outros países e ainda permitidos no Brasil?

Lia: Há vários. Esses 11 agrotóxicos que estamos no processo de revisão junto à Anvisa estão sendo revistos justamente porque já foram denunciados os efeitos proibitivos deles. E a Anvisa tem uma lista de cerca de 60 produtos já proibidos em outros países. É muito lento esse processo porque infelizmente não temos uma conjuntura política e jurídica favorável à proteção da sáude, mas sim favorável à produção.


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